quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Um budismo nacionalista e solidário aos povos

Só quando o imperialismo for eliminado pode prevalecer a paz. Dia virá em que os tigres de papel serão liquidados; eles, porém, não se extinguirão por acordo próprio: devem ser abatidos pelo vento e pela chuva.

Mao Tsé-tung

Estranheza, no mínimo, causa a um leitor budista a epígrafe deste texto. Mao Tsé-tung foi e é pintado pelos meios de comunicação das classes dominantes, sobretudo no hemisfério ocidental, como um ditador sanguinário à beira da loucura. Não perderei tempo criticando a caricatura e a desumanização que sempre sofreram e sofrem os inimigos das burguesias nacionais e imperialista. Basta pensar na forma como é apresentada a organização social e os governantes da República Popular da Coréia, a chamada Coréia do Norte. A classe dominante promove sistematicamente a destruição da consciência histórica dos povos como estratégia fundamental para subjugá-lo e impedir a solidariedade entre as nações dependentes contra o imperialismo. No Brasil, pouco ou nada se sabe sobre a Coréia do Norte e a China e, numa invasão imperialista sob o comando dos EUA à Coréia, o brasileiro, graças ao processo de desumanização promovido pelos meios de comunicação dominante, não terá empatia pelos coreanos. O povo brasileiro não se identifica nem com seus compatriotas vizinhos latinos americanos: o bolivarianismo é rotulado pela imprensa burguesa como uma versão da loucura esquerdista na América Latina e os trabalhadores brasileiros seguem submetidos à condição de ignorância em relação à estas questões. Nós, brasileiros, também não nos indignamos contra nossa própria miséria física e moral; não temos genuína solidariedade na luta coletiva contra o genocídio de negros e índios que ainda ocorre no Brasil. Não por coincidência, nossa pátria foi a última a abolir formalmente o trabalho escravo. Por sorte, o tempo não para. O Tao, a Natureza, transforma-se inexoravelmente e, mais cedo ou mais tarde, o povo há de se iluminar sublevando-se contra a opressão e a exploração.
Parece contraditório que um budista fale contra as guerras imperialistas em defesa da autodeterminação dos povos e faça referência à Mao que, como grande líder da revolução chinesa, foi responsável pela ocupação do Tibet. Para a maioria das tradições budistas, Mao é lembrado apenas por causa da ocupação do Tibet pela China popular em 1950-51. Geralmente, essa memória é distorcida pelas causas e condições das quais os próprios budistas são dependentes: o capitalismo. De qualquer forma, não há razão para titubear: sou por um Tibet livre e soberano. Entretanto, não faço coro junto ao imperialismo contra a China que, atualmente, é um gigante do capitalismo mundial e representa uma das tantas revolução atravancadas pelas condições do século XX; muito menos faço coro contra a memória do comandante Mao, pois, ao contrário do que apregoam os filmes hollywoodianos e os ideólogos do capital, a ocupação chinesa no Tibet não pode apenas receber o rótulo moralista “banho de sangue”. Sangue e sofrimento há em todas as guerras e em todos os lados envolvidos. O que os ideólogos do capital ocultam é que a ocupação chinesa foi também a esperança de emancipação celebrada por muitos camponeses tibetanos. Sim, muitos camponeses tibetanos celebraram a esperança de emancipação do trabalho. O lamaísmo, que surgiu por volta do século IX no Tibet, fundava-se no sobretrabalho servil dos camponeses, cujo excedente era apropriado pelos lideres budistas em seus monastérios. O lamaismo como ideologia de estado, tal como existia antes dos anos 1950 no Tibet, já não existe e jamais voltará a existir; agora é, no máximo, apenas uma vertente mundial do budismo. Por isso, é de grande valor a afirmação do atual Dalai Lama de que a primeira geração de comunistas do Partidão chinês era admirável e possuía grande dedicação às causas dos trabalhadores e do povo pobre. Em relação à Mao Tse Tung, o líder tibetano afirmou: "ele me considerava como seu filho, eu o considerava como meu pai; era uma relação muito próxima".
A história é contraditória. Por mais que um marxista tenha uma consciência crítica da história e um budista tenha autoconsciência, nada disso anula as causas e as condições de suas formas de pensar e, além disso, como a verdade não é algo estanque, ninguém a tem como dono, ao contrário, aproxima-se dela sucessivamente e um sábio haverá de saber o quão grande é sua ignorância. Uma visão correta sobre a gênese dependente dos fenômenos não pode obscurecer o fato de que um budista é gerado de forma dependente de suas relações sociais, em outras palavras, pelas condições karmicas. O fato de ser budista, não isenta um indivíduo das causas e condições sociais em que nasce e se desenvolve, ao contrário, o fato de ser budista é consequência destas causas e condições. Atualmente, o capital mundializado é causa de sofrimentos enormes em todo globo, condicionando o modo de ser dos indivíduos; o imperialismo é condição necessária da expansão capitalista e da guerra intercapitalista por novos mercados, recursos naturais e força de trabalho barata. Estas guerras assumem diversas roupagens. Diversas narrativas procuram explicar essas guerras e as mais comuns são narrativas religiosas que justificam, por exemplo, o genocídio do povo palestino pelo criminoso estado de Israel. Essas falsas narrativas ocultam os verdadeiros motivos pelos quais políticos e empresários organizam suas guerras, por exemplo, confundido budistas e mulçumanos em todo mundo sobre a situação de Mianmar. Das causas e condições de seu tempo histórico nenhum ser escapa e o indivíduo, ao tornar-se budista, não se torna exceção à regra. Em Mianmar, budistas estupraram e mataram muçulmanos, mas a “intolerância religiosa” não pode explicar  por si    só essa barbárie que é a corrupção e a ameaça imposta por empresas chinesas e sul-coreanas, estadunidenses, francesas, canadenses e indianas que disputam a exploração do petróleo e gases no território de Mianmar. O capitalismo gera uma visão incorreta sobre a realidade que impede ou dificulta a realização do Dharma. Essa visão incorreta causada pelo capital nas condições do imperialismo tal como ocorre em Mianmar pode ser observada por todo globo, como o monge tailandês Wirapol Sukphol que transformou o Dharma em capital para acumular riquezas e poder, incluindo o poder sobre o corpo de mulheres.
Os que reproduzem as falsas narrativas das classes dominantes permanecem na superfície dos fenômenos não alcançando a essência das coisas; repetem explicações que recebem dos mais diversos meios de comunicação sem se perguntarem quais os interesses dos proprietários destes meios de comunicação em se comunicarem de tal forma: a quem servem? Quem lhes financiam? Essas narrativas acerca dos conflitos imperialistas ocultam a luta entre classes (exploradores/opressores X explorados/oprimidos) em confusos discursos sobre democracia e liberdade, discursos religiosos, étnicos e de relações de gênero que, mesmo constituindo condições importantes para uma correta visão do todo, jamais são causas. A décima primeira estrofe do Dhammapada diz: “Os que imaginam o essencial no inessencial vêem o inessencial no essencial, estes habitam a esfera do falso pensamento e jamais atingem a essência.” Alcançar a essência de algo é descobrir suas causas. A realidade é por demais complexa para aceitarmos passivamente as informações que nos é transmitida por uma empresa ou grupo de comunicação. Como tudo o que é humano tem sua origem na mente, esta transmissão possui uma intenção por trás e é preciso ter uma clara visão sobre essas intenções, sobre os interesses destas empresas e grupos. É necessário se perguntar se a fonte destas informações que chegam até você está comprometida com o oprimido explorado ou com o explorador opressor. Essa pergunta é importante para se desfazer de qualquer ingenuidade acerca do aqui e agora ao qual precisamos estar despertos.
A visão correta implica, dentre outras condições, que superemos nossos preconceitos ou ideias apriorísticas. Neste sentido, a independência do Tibet não se confunde com a defesa do budismo como ideologia de Estado, bem como a defesa do comunismo não significa a defesa das barbáries cometidas em nome do comunismo. Mao Tse-tung, como o próprio XIV Dalai Lama afirma, era admirável e lutava pelo bem das massas trabalhadoras chinesas; o Lama chegou a afirmar que se considera meio budista e meio marxista. Igualmente, não podemos pressupor que um Tibet independente hoje retornaria ao lamaísmo. O tempo não volta. Por isso, defendo a independência do Tibet e, ao mesmo tempo, os ideais de emancipação do trabalho da revolução chinesa de 1949, neste sentido, são os trabalhadores tibetanos que devem decidir sobre suas próprias vidas. Nada deve ser produto da decisão de burocratas de estados que se autoproclamam socialistas e de religiões que se autoproclamam salvadoras e bondosas. Ao povo deve pertencer o seu destino, e o povo tibetano deve exercer a autodeterminação.


O caso brasileiro


O projeto petista, tucano e do bolsonarismo são antinacionalistas e entreguistas. O imperialismo financia o golpe via instituições como a Atlas e outras, com seus subordinados civis como o MBL e subordinados militares como os que apoiam Bolsonaro. Estes falsos nacionalistas entregam e entregarão as riquezas nacionais aos empresários estrangeiros e seguirão assassinando o povo brasileiro que luta pela sua emancipação, como são os camponeses organizados no MST e os trabalhadores sem teto dos centros urbanos. Esses falsos nacionalistas iludem o povo brasileiro a serviço do imperialismo, a serviço desta rede de grandes empresários internacionais que exercem a rapina e a desgraça de povos inteiros pelo planeta. Estaremos atento e seremos oposição ao governo de direita e fascista de Bolsonaro que é antipopular e antinacionalista.
A conjuntura das lutas por independência nacional e emancipação dos trabalhadores se modificou, todavia, os inimigos da verdade e os exploradores do povo continuam sendo tigres de papel, pois as revoluções do século XX, em especial a vietnamita e a cubana, demonstraram que um povo organizado e consciente é capaz de derrotar a mais cruel e feroz máquina de matar do planeta: o imperialismo estadunidense e seus lacaios nacionais como esses militares entreguistas que hoje ocupam o governo e permanecerão ao longo do governo Bolsonaro. A causa da crise em que nos afundamos não é a solidariedade aos imigrantes que buscam refugio no Brasil. Às vítimas das guerras imperialistas, toda nossa solidariedade; não são eles que usurpam nossas riquezas e super exploram nosso povo.
Somos budistas brasileiros, Shin, Zen e de outras tradições unidos pela emancipação do Brasil e de todos os povos que sofrem nas unhas da águia de rapina ianque e seus subordinados (Colombia, Israel, França, Inglaterra, etc). O imperialismo é um tigre agressor, mas quando a nação subjugada perde o medo, o imperialismo se revela um tigre de papel. A visão correta retira a aura do opressor e fornece ao oprimido a força moral e intelectual necessárias para a emancipação; como explica Marx em O Capital, o “(...) indivíduo A não pode se comportar para com o indivíduo B como para com uma majestade, sem que, para A, a majestade assuma a forma corpórea de B (...)”, ou seja, quando o explorador-opressor perde a majestade, seus súditos não o reconhecem como rei. O povo (conjunto das classes subalternas de um Estado-nação) se levanta em luta como uma tempestade: o rei sem majestade ou o tigre de papel é açoitado pelo vento e pela chuva. Abre-se uma época de lutas sociais e revoluções, a mente e o corpo se transformam. Viva o povo brasileiro! Fora o falso nacionalismo que governará o Brasil nos próximos anos! Todo poder ao povo!

sábado, 30 de dezembro de 2017

Mário Schenberg e o budismo-marxismo

"Se eu tivesse de escolher um cientista como continuador de minha obra,
seria o brasileiro Schenberg"
- Einstein

Aprendi com Lukács que a causalidade é princípio do pensamento racional. Igualmente, aprendi isso com os pré-socráticos e os budistas. Como afirma Sidarta, o buda: "Quem vê as causas, vê o Dharma". No entanto, existem muitos escritos contra o princípio da causalidade e sua aplicabilidade às dimensões subatômicas. Jung em seu prefácio ao I Ching afirma que a causalidade seria um princípio do pensamento ocidental. Grandes pensadores como Hussel e outros também são contrários à aplicação da causalidade ao mundo quântico, relativístico, subatômico, etc. Esse texto não é uma crítica a essas posições, apesar da minha discordância. Um marxista que admiro muito e de riquíssima contribuição em diversas áreas, o italiano Antonio Gramsci, desconsidera a possibilidade da causalidade nas ciências humanas, pois este princípio estaria em contradição com a liberdade da práxis (prática, karma, causalidade posta). Todos incorrem no mesmo equívoco: confundem causalidade com determinismo.

É moda, devido ao falso debate científico propagado pelos meios de comunicação dominantes, a afirmação de que a causalidade seja um princípio racional apenas para a física clássica, não a moderna. Há estudos que discordam desta posição. Interessante notar que o alemão Heisenberg é sempre citado quando se quer argumentar contra a causalidade na física moderna, todavia, essa sua posição exposta em 1927 contra o principio da causalidade fora abandonada já em 1930 em outros trabalhos. Quando citam a indeterminação de Heisenberg, se esquecem de afirmar essa evolução em seu pensamento: indeterminismo não anula a causalidade; bem como a indeterminação está também presente no mundo da física clássica.

O marxista brasileiro Mário Schenberg (1916-1990), político e crítico de arte, físico de renome mundial, foi grande defensor do princípio da causalidade aplicado à teoria da relatividade e da aproximação entre a lógica dialética de Marx com o pensamento oriental. Abaixo reproduzo trechos de uma entrevista na qual tematiza o budismo, sobretudo o filósofo e lógico budista indiano Nagarjuna (sec. II-III). Com a palavra, o professor Schenberg:




"A essência do marxismo é uma compreensão dialética da História. A compreensão dialética da história não é um pensar cartesiano, é exatamente uma coisa anti-cartesiano. Talvez na dialética hegeliana, se ela for bem aplicada, e depois na dialética marxista, o pensamento ocidental atingiu maior aproximação com o pensamento oriental. Aliás, isso é uma coisa óbvia para quem compara, por exemplo, a dialética marxista com o taoísmo chinês. Os filósofos soviéticos reconhecem isso, considerando Lao-Tsé como um dos fundadores da dialética. Quem sentia muito isso era Brecht. Não sei se você sabe: Brecht tinha um desses rolos com pintura ou desenho, com um retrato de Lao-Tsé, que ele levava pra onde fosse. Assim que chegava num lugar ele o desenrolava e pendurava na parede. Realmente há uma afinidade muito grande entre os dois pensamentos. Mas essa coisa foi muitas vezes perdida, quando o marxismo foi vulgarizado e deturpado. (...) Mecanizado, não é? O que seria preciso, seria exatamente, desenvolver mais a concepção da Dialética, que é uma tentativa de superação da racionalidade cartesiana. Um outro tipo de pensamento que iria além da racionalidade restrita, e que tem muitos contactos com o Taoismo e outras coisas do Oriente. Eu acho que o marxismo pode ser um instrumento extremamente útil, se for utilizado de uma forma criadora, mas não como um conjunto de receitas. Uma receita fixa é o tipo da coisa anti-dialética. Já que a realidade está sempre em modificação é preciso adaptar o pensamento a essa mobilidade do real (...) Na realidade eu não sei se se pode ensinar dialética a alguém. Eu acho que a dialética é um tipo de ação mental, digamos assim, que tem muitas das qualidades de uma arte. Não é um processo metódico que se aplica automaticamente e que dá resultado certos. É um certo estilo de pensamento diferente, muito intuitivo. Por isso muitos trechos de Marx são geralmente mal interpretados; quase todos. Um caso interessante é do texto em que ele fez aquela tirada famosa sobre a religião, em que diz que a religião é o ópio do povo. Essa frase foi destacada do contexto, e se a gente lê o texto completo, vê que o pensameno dele era bem mais complexo. (...) Inclusive a própria idéia de religião deve ser vista dialeticamente, porque a religião também não é uma coisa fixada de uma vez por todas, mas está mudando continuamente de conteúdo. Na realidade houve muitas vezes uma vulgarização do marxismo, e formularam um certo número de regras. Ora, essas regras não adiantam muito. Eu acho, por exemplo, que não adianta grande coisa, para se aplicar o marxismo, conhecer aquelas três leis da Dialética que Engels enunciou. São certamente interessantes, mas não é conhecendo aquelas três regras que se consegue analisar dialeticamente uma situação. É preciso um senso das contradições, sentir quais são essas contradições. E neste ponto você encontra em Mao coisas interessantes, quando ele combina certas coisas da dialética marxista com aspectos do pensameno tradicional chinês obtendo um esquema mais rico. Em vez de se fixar sobre uma única contradição, ele considera a existência necessária de várias contradições simultâneas e a inter-relação entre elas. (...) Provavelmente Marx não conhecia a Filosofia Oriental, mas se ele a conhecesse, acho que que teria gostado muito. Alguns filósofos soviéticos reconheceram a importância da Filosofia Oriental, tanto que alguns dos melhores estudos sobre esse assunto foram feitos na União Soviética. Inclusive há uma obra monumental de um russo (é um nome muito atrapalhado) sobre a Lógica do Budismo. Há uma tradução inglesa desse livro, creio que da Dover. Mas é uma coisa muito interessante, porque essencialmente uma grande parte do Budismo trata de problemas lógicos. (...) Seríssimos, não é? Tanto que agora já se está começando a compreender no Ocidente que o filósofo Nagarjuna foi um dos gênios da Lógica. Nagarjuna compreendia, por exemplo, muitas coisas que Bertrand Russell começou a compreender no Ocidente sobre a natureza da proposição e outras coisas. Então, mesmo no que se refere à compreensão da Lógica e outros problemas há muitas coisas que o Ocidente não compreendeu tão bem como o pensamento oriental antigo. Mas eu acho que a aproximação maior, talvez, do pensamento oriental se encontra exatamente na dialética hegeliana e marxista".

Confira a entrevista completa clicando aqui.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Espiritualidade materialista?

O sábio vietnamita Thich Nhat Hanh explica que a meditação nos leva a compreender que não há uma substância ou uma essência permanente, imutável, que funda a realidade. A ideia de "consciencia cosmica" ou "buda primordial" ou mesmo "designer inteligente" são incompatíveis com o espírito empírico e causal de Buda e também de Marx. A unidade absoluta entre cada um de nós e o restante do universo é demonstrada pelo conceito de fluxo energético e não implica na existência de entidades gerais, mas no reconhecimento de que cada forma de ser é única e irrepetível. Tudo o que existe é o que Buda denominou de coisas compostas; tudo o que existe surge e perece. "Panta rei" (tudo flui), escreveu o sábio grego Heráclito; o cientista francês Lavoisier afirmou que nenhum existente surge do nada e que na natureza nada se perde, mas tudo se transforma permanentemente de uma forma para outra. Por isso, para Thich Nhat Hanh todo ser nada mais é que uma forma de inter-ser; ele explica que os ensinamentos budistas não nos esclarece acerca da substância, mas é justamente o contrário; como já escrevi no blog, a prática budista nos ajuda a reduzir e superar as abstrações que servem como envólucros da realidade e geradores de sofrimento. A substância para o budismo seria a não substâncialidade. A insubstâncialidade de tudo o que é real significa que o eterno é apenas uma ideia sem correspondente na realidade e que tudo acaba. À medida em que compreendemos e vivenciamos a insubstância experienciamos a verdadeira relação entre nome e forma ou consciência e realidade. Descobrimos a potencia e a beleza de nossa condição humana, natural e terrena, frágil e rara, dando-nos paz interior e bondade amorosa, compaixão para com todos os seres e felicidade em viver. O eterno, o sem-fim, o não-composto não existe, tudo depende de causas e condições, a alma e o corpo formam uma só coisa, ao morrermos nossa alma não se desprende do corpo: nosso corpo e nossa alma não são duas coisas diferentes. Deus portanto é uma ideia, é apenas as nossas qualidades positivas projetadas para fora de nós mesmos como uma coisa externa. Não é Deus que determina nossas vidas, mas nós mesmos, nossas escolhas, ou seja, é o nosso karma (ação). Karma é sinônimo daquilo que Lukács, em sua ontologia, chama de causalidade posta; a prática coloca coisas no mundo (na forma de pensamento, palavras e ação) e sofre as consequências do que põe. Escreve Marx: "(...) seria uma contradição fazer, de um lado, que todas as ideias encontrem sua origem no mundo dos sentidos e, de outro lado, afirmar que uma palavra seja algo mais do que uma palavra, que além das entidades sempre concretas que representamos existam ainda entidades gerais. Uma substância incorpórea representa, muito antes, a mesma contradição representada por um corpo incorpóreo. Corpo, ser, substância são uma e única ideia real. Não é possível separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A palavra infinito é carente de sentido, caso não significar a capacidade de nosso espírito para acrescentar sem fim. E, como só o material é perceptível e suscetível de ser sabido, não se sabe nada da existência de Deus." As qualidades divinas são as nossas qualidades reais, sensíveis, ou seja, as nossas potencias práticas que podem ser desenvolvidas por cada ser humano em qualquer lugar e a qualquer momento. Reconhecer apenas a existência dos interseres em unidade a que nomeamos realidade; reconhecer o automovimento causal determinado pelas condições em que se encontra cada ser é o primeiro passo para a compreensão do Tao, o fluxo energético sem fim nem começo do aqui agora simultâneo em todo cosmo. Uma destas formas de interser é o ser humano, cuja característica principal é antever os efeitos de suas ações. Que efeitos provocamos no mundo? O dharma, que é o método desenvolvido por Buda, fornece resposta a essa pergunta e, sabendo quais efeitos colocamos na realidade, podemos conter ou reduzir os efeitos prejudiciais aos demais seres e ajudá-los a alcançar a paz e a serenidade, sinônimos de felicidade. Os exercícios práticos para gerar boas causalidades, bons efeitos ou bons karmas, ou seja, para que sua prática seja amorosa e bondosa é o que o atual Dalai Lama chama de espiritualidade. Neste sentido, a espiritualidade não está em contradição com a filosofia materialista de que tudo o que existe são formas materiais em permanente movimento. Não acreditar em Deus ou no além supra-sensível, não crer numa força superior, não significa niilismo, não significa o abandono de valores que norteiam nossas relações. Espiritualidade não implica uma substância eterna; não é sinônimo de espírito ou espiritualismo ou espiritismo; não significa a crença no não-material (ainda que muitos marxistas insistam nessa querela); espiritualidade é apenas uma forma de prática. Deveríamos encontrar outro nome para substituir a expressão "espiritualidade"? Talvez. Mas a questão não é de nome, e sim de forma: a forma que é você. O ser humano é o ser da práxis, que é sinônimo de prática, de karma, por isso, meditarmos sobre o que colocamos no mundo ajuda bastante no autoconhecimento e ajuda a compreender o significado do não-agir. Agir só se for para a emancipação dos seres, para a felicidade de todos. Você é o sujeito da mudança, porque não podemos separar seu espírito de seu corpo, sua matéria daquilo que você sente e pensa, por isso, a mudança e o autoconhecimento não são processos meramente intelectivos, mas de mudanças na prática, na forma de intersermos. Não basta interpretarmos e compreendermos a necessidade de mudar o mundo rumo à felicidade de todos e todas; não basta compreendermos corretamente o movimento da realidade sob o capitalismo, suas ilusões e sofrimentos. É preciso mudar o mundo e, portanto, mudar de imediato aquilo que está ao nosso alcance: nós mesmos. Você é aquilo que faz e se o que você faz gera mais ansiedade, medo, tristeza, raiva nos demais seres, seu karma/práxis não ajuda em nada para a iluminação humana global e reitera as relações sociais da economia de mercado. Se você compreender o não-eu; você como um interser, a busca de sua libertação do sofrimento é também ajudar aos outros a livrarem-se do sofrimento; como escrevera Marx no Manifesto Comunista: a liberdade de cada indivíduo é condição para a liberdade de todos. Enfim, o que você faz no mundo?Que causalidades são postas quando você age? Qual o seu karma?

sábado, 2 de maio de 2015

Nirvana, a cessação dos estímulos

No último texto aproximamo-nos do conceito de samsara, o eterno fluxo de gênese, desenvolvimento e perecimento de tudo o que existe ou existirá. Vimos também que somos parte deste fluxo e, limitados por nossos sentidos, desenvolvemos inúmeras ilusões sobre a realidade que, sobretudo, nos impede de compreender a origem dependente de todos os seres e nos apegamos ao "eu". Concluí o texto sobre samsara afirmando que nossa mente é como um lago: sob a chuva, distorce a imagem do céu. Cada gota de chuva é um estímulo da realidade: sons, sabores, formas, pensamentos, etc. Se a chuva cessar a distorção na imagem do céu também cessa. A meditação leva-nos ao "cessar" dos estímulos em nossos sentidos, gerando paz interior e modificando o modo como nos relacionamos com samsara, diz-se que vemos o nirvana. Por isso, samsara e nirvana são a mesma e única realidade, o que altera é o modo como nos relacionamos com ela.

A palavra nirvana vem do sânscrito e é formada pelo prefixo "nir" que significa não e pela expressão "vana", que significa cordão. Aqui o significado é não estar amarrado ou preso ao samsara. Alguns autores também associa o termo "vana" ao substantivo "vayo", que significa ar ou movimento, assim, nirvana seria o fim do movimento, do fluxo a que estamos submetidos; o desatar do cordão que nos prende a samsara.

Para além de questões etimológicas, é interessante notar que não se trata de "alcançar" ou "chegar" a uma espécie de paraíso ou qualquer outro lugar. Um indivíduo qualquer que se torna um buda vê nirvana, mas não vai a um lugar chamado nirvana. Durante a meditação, ao ver nirvana o indivíduo permanece ali, sentado onde está. O zazen, por exemplo, que é a prática dos zen budistas significa meditar ("zen") sentado ("za") e é realizado com o rosto voltado para uma parede afim de reduzir o máximo possível os estímulos que nos fazem mover e movem nossa mente. A meditação, uma das três características fundamentais da prática budista, decanta a mente e, aos poucos, desata-nos dos estímulos externos (sons, cores, etc) e internos (pensamentos, ansiedade, etc) dando-nos paz interior, felicidade e sabedoria.

Por que dizem os sábios budistas que essa experiência é intraduzível em palavras? Como explica Jetsunma Tenzin Palmo "Há um nível de mente, de ser cônscio, que não é dual, que não é conceitual, que é por sua própria definição além do pensamento. Não pode ser pensado e não pode ser conceitualizado, mas pode ser realizado." Ser cônscio e não ser conceitual pode soar contraditório para o marxismo dominante na tradição marxista, pois acostumado a pensar nos moldes da modernidade na qual tudo se reduz à gnosiologia, por isso ocorre o que já escrevi em outro texto, muitos marxistas amigos meus torcem o nariz para a prática espiritual (não confundir com religião ou crença em seres superiores e divinos) sem nem ao menos tentarem verificar, por via da prática, as possibilidades de autoconhecimento e autorrealização pela auto-atividade. Para o "marxismo" reduzido a um método científico chamado de "materialismo histórico-dialético" - expressão que Marx nunca utilizou, mas que se tornou moda após a segunda internacional -, predomina a visão de que há em nossa espécie uma não-identidade entre o sujeito e o objeto, entre o indivíduo e o mundo. Atendo-se a este aspecto, que também é verdadeiro, esquece-se, todavia, do outro lado da contradição que é a identidade.

O indivíduo, diz Marx, é o ser social, por isso, sua formação é histórica, sua origem é dependente das causas e condições sociais em que surge e se desenvolve até sua morte; suas experiências práticas forjam o seu ser. Num determinado momento da evolução individual, explica o psicólogo marxista Vigotski, há um salto qualitativo no desenvolvimento humano que o distingue dos chimpanzés: surge um pensamento verbal e uma fala intelectualizada, mais ou menos aos dois anos de idade. O ser humano é formado na sua relação com os outros e, inevitavelmente, pelas palavras com as quais foi estimulado desde o nascimento e que passa a utilizar. As palavras são estímulos externos que se tornam internos.

Antes de desenvolver o pensamento verbal e a fala intelectual o ser humano é já um ser, e à medida em que vai se apropriado, interiorizando a cultura na qual nasceu e tem de viver acaba por se identificar totalmente com esse repertório cultural como se lhe fosse genético. Desde crianças somos levados a crer que  nossos pensamentos são nossos e o que penso sou eu. Mesmo marxistas que defendem única e exclusivamente a não-identidade entre o sujeito e o objeto acabam por se identificar com esse pensamento que deveria ser também seu objeto de análise. Temos a ilusão de nos identificarmos com o que pensamos, falamos ou agimos.

Não pensem com isso que acredito numa "essência" dentro de cada um de nós e que precisa ser reencontrada... não! Cada ser é uno com o que é. Um homem violento é violento não porque perdeu sua essência natural boa, mas porque ele foi forjado assim pelas causas e condições em que evoluiu como indivíduo e assim age porque não controla a si mesmo na medida em que se identifica com o que é.

O pensamento, tal como toda forma de ser, é movimento, atividade. Os fluxos energéticos neurológicos nos condicionam: uma vez estabelecido uma conexão fica mais fácil pensar e agir desta maneira devido ao fato de que o fluxo já foi realizado uma vez e, assim, cria-se uma espécie de "sulco" em nossa mente pelo qual flui nossa reação. Criam-se hábitos mentais e corporais. Ou seja, você é o que é efetivamente, mas tem a ilusão de que escolheu ser tal como é ou se resignou diante da impossibilidade de mudar sua personalidade para melhor. Como se diz: "Eu sou assim mesmo, é meu jeito"

A meditação, quando decanta a mente, afasta justamente essas reações típicas da personalidade e curam esses "sulcos" pelo qual nossa mente está condicionada a fluir. Serenando os estímulos não apenas externos, mas também internos, reduz-se as abstrações que temos (palavras, conceitos) e isso não é absurdo, é apenas descondicionar-se daquilo que somos uma vez que as abstrações são construções sociais que interiorizamos. Como expressar em palavras esse estágio maravilhoso que é o nirvana (paz interior e sabedoria irreversíveis) em que as abstrações e os pensamentos cessam junto com os sentidos (nirvana = sem movimento)?

Ver o nirvana é ver-se como mais uma parte de samsara, por isso, se você se identifica com seus pensamentos, suas falas e suas ações; se você se identifica com sua roupa, seu carro ou sua casa; mas não se identifica com um rato ou uma batata-doce ou um outro ser humano qualquer você ainda não será capaz de ver-se como natureza.

Pensemos mais sobre isso: se não sou natureza o que sou?

Uma das críticas de Marx aos filósofos é justamente essa divisão entre o homem e a natureza. Não há contradição entre sociedade e natureza. Mas enquanto estivermos presos a samsara evitaremos a possibilidade de experimentarmos a consciência sem as abstrações. Como todo significado de qualquer palavra é uma abstração (Vigotski) não podemos exigir que nos expliquem com palavras a experiência do nirvana. Ver o nirvana é uma experiência individual que não pode ser explicada, mas pode ser vivida por qualquer ser humano, basta ter paciência e praticar o budismo.

Talvez eu e você não consigamos vê-lo, mas na medida em que nos aproximarmos deste estado mental desvelaremos samsara e compreenderemos cada vez mais a nossa unidade com todos os seres e nossa identidade com aquilo que não nos é idêntico. Compreenderemos a vacuidade. Se serenarmos nossa mente como um lago que reflete o céu sem perturbação em sua superfície o fluxo eterno de samsara não causará sofrimento ou ilusão e daremos um salto em nosso modo de ser, pois somos este fluxo, somos uno com a totalidade e isso gerará mais empatia, alteridade, amor, compaixão. Por isso, ver nirvana é a "iluminação" que desenvolve nosso humanismo em outros níveis e aspectos. Marx, quando fundou sua original visão de mundo, concluiu que  humanismo = naturalismo. Somos uno com nosso planeta e todos os seres, e ver o nirvana deve ser de tamanha beleza e paz interior que vale a pena tentar.

domingo, 26 de abril de 2015

Mudança na forma de pensar exige mudança na forma de agir










Só a luta muda a vida e é preciso lutar também contra nós mesmos. Como escreveu o filósofo Lukács: "(...) é sempre possível, e na realidade acontece frequentemente, que uma pessoa lute com paixão contra uma alienação que a oprime fortemente e, ao mesmo tempo ignore inteiramente outros campos, outras alienações. (...) como um pai e um filho que são sinceros e convictos ativistas na luta pela libertação dos operários (isto é, lutando contra essa forma de alienação), nas relações com a mãe e a filha mostram-se ao invés opressores e aproveitadores (...)" Não se esqueça: uma mudança na forma de pensar exige mudança na forma de agir. Pratique a mente alerta (atenção plena) e a meditação, você perceberá os benefícios em sua personalidade melhorando sua relação consigo e com os outros. Não é milagre, é prática. Experimente!