domingo, 26 de abril de 2015

Nem budismo, nem marxismo.

Na primeira postagem fiz um convite para construirmos juntos o budismo marxismo, todavia, para que isso se realize é necessário abrirmos mãos tanto de um quanto de outro. Contraditório? Sim e não. A realidade é contraditória e ninguém escapa a essa constatação. A contradição é o modo de existir de todos os seres. Se pensarmos nos movimentos universais de atração e repulsão da massa-energia, perceberemos que nós mesmos somos assim, nos atraímos por A e repelimos B. Sencientes, ora estamos felizes ora tristes. Estamos alertas ou em repouso e assim por diante. Mesmo felizes, algo pode ser considerado triste por nós: quando estamos juntos dos amigos em confraternização, uma má notícia pela televisão pode nos fazer tristes em meio a alegria, mesmo que por apenas alguns segundo.

Mais que um pensamento binário, a contradição implica o reconhecimento de diversos fluxos para compor um único ente, o que significa dizer que tudo o que existe (pessoas, coisas, plantas, animais, sentimentos, pensamentos, ar, luz, elétrons) é o resultado de muitos outros processos. Marx dizia que o concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações. Essa conexão ineliminável do todo e das partes é conhecida no budismo como a teoria da "gênese condicionada" ou "origem dependente". Portanto, quando falamos em contradição não devemos pensar apenas de modo binário, positivo-negativo, escuro-claro. Devemos pensar, sobretudo, no fato de que algo é e não é ao mesmo tempo e, a partir daí, descobrir que um ente específico só existe na medida em que está em unidade com aquilo que ele não é. Você, por exemplo, não é o ar que respira, mas como pensar em você tal como é se não levarmos em conta o ar que você respira como fonte de energia para seu corpo?

O filósofo alemão Hegel falava da identidade entre o idêntico e o não-idêntico. Você não é idêntico ao oxigênio, mas sem ele não é possível a você ter identidade humana: você é o que é pelas condições e causas do mundo em que você vive, tal como o oxigênio presente na atmosfera terrestre é uma destas condições vitais. Por isso, quando afirmamos que um ser humano se distingue de outro animal por ter linguagem, não pode ser de todo verdadeiro, afinal, é apenas uma das características dentre as várias que se condicionam mutuamente no ser humano concreto. Quando perguntam o que você faz e você diz sua profissão, não é nem a metade da verdade. Você não é o alimento, também não tem como única atividade a sua profissão, mas é também ele. Então você é e não é você. Essa é apenas uma primeira maneira de pensar a não realidade do eu.

O ser e o não-ser constituem tudo o que existe. A unidade com o alimento, por exemplo, não ocorre apenas quando comemos, mas também quando não comemos. Se o alimento está no armário, ficamos com a mente livre para outras atividades, ou seja, sua mente e seu corpo estão em unidade com este fato; se acabou o alimento da dispensa, você precisa providenciar mais, e seu corpo e mente estarão voltados para essa atividade e, mesmo se você estiver no trabalho ou em outro lugar, lembrará de passar no supermercado ou na venda mais tarde. Tudo está em relação e traz em si o outro.

Antigo símbolo chinês, o Tai Chi representa justamente essa ideia. Tai Chi significa "viga mestra" e representa a sustentação do ser por meio das forças contraditórias do yin e do yang. A ideia de contradição, entendida não binariamente, é oriunda do fato de que tudo possui uma origem dependente; a inter-relação entre todos os seres é a viga mestra do universo.





 Parece contraditório quando Buda ensina a seus discípulos a não acreditarem nele, mas, antes de tudo, verificarem na pratica seus ensinamentos? O mestre tibetano Namkhai Norbu Rinpoche afirmou que Buda não era budista. Buda, de modo coerente, não poderia ser budista uma vez que sua teoria se funda na noção de que estamos condicionados pelo "permanente fluxo" (samsara) da insubstancialidade de todos os seres. Por sua vez, a lógica que auxiliou Marx, conhecida como dialética, leva-nos à concluir pela mesma insubstancialidade de todos os seres, uma vez que tudo o que existe é um constante fluir e perecimento. Quando comunistas franceses, influenciados por sua explicação sobre o capitalismo, incluíram o sufixo "ismo" em seu nome, ele afirmou: "Eu não sou marxista". Se tudo é fluxo, como engessar conceitos em sistemas de pensamentos, arcabouços teóricos, filosofias e religiões?

Quando falo da prática budista para militantes comunistas e marxistas muitos torcem o nariz, possuem uma mente reativa. O marxismo tornou-se algo intocável, cuja pureza deve ser preservada contra a heterodoxia ou contra os desvios que o rebaixam. De fato deturpações ocorrem em algumas situações, mas, como o próprio Marx afirmou: toda ciência deve ter como fundamento a realidade empírica, que se processa diante de nossos olhos. Negar de imediato novas possibilidades afim de conservar a "coerência" do marxismo é criar um novo conjunto de dogmas, uma abstração na qual se agarrar apesar da realidade.

O budismo, tal como aqui o entendemos, como ciência da mente e caminho espiritual, pode contribuir com seus ensinamentos para todos e todas que queira entender a realidade tal como ela é, sem contradizer o fato, iluminado por Marx, de que a realidade capitalista é um permanente fluxo de pessoas e objetos na forma de mercadorias. Para Marx, o capitalismo é apenas uma das fase no processo de nascimento e morte de organismos sociais, processo ininterrupto enquanto existir seres humanos. Sim, o capitalismo é transitório, pois tudo o que existe acaba, queiramos ou não.

O capitalismo compõe grande parte da atual fase evolutiva de samsara e nosso apego ao samsara gera sofrimentos próprios e alheios. Apego ao samsara gera pensamentos conservadores, pois não conseguem ver além do fluxo ao qual estão condicionados. Como tudo acaba, quem está apegado ao que perece sofre. Os sinais de desmoronamento do capitalismo geram sofrimentos a essas pessoas, mesmo que o fim do capitalismo lhes tragam melhores condições de vida isso não é imediatamente sensível e o que enxergam é o mundo em crise e a crise do eu, do ego cujas causas e condições estão ruindo (falta de emprego, aumento do custo de vida, queda no padrão de consumo, etc).

Por isso, abandonar o marxismo e o budismo, não significa criar algo novo e nem julgar que são duas tradições superadas, não é nossa pretensão; significa apenas desapegar do puritanismo teorético para que possamos ver com mais clareza as possibilidades de desenvolver nossas potencias humanas. Nem Marx, nem Buda se apresentavam como filhos de Deus, por isso, seus escritos e ensinamentos existem para serem cotejados com a realidade afim de aprendermos cada vez mais sobre nossa mundaneidade, a nossa condição humana. Precisamos abrir mão deles como dogmas e vê-los com olhos curiosos. É com esse objetivo que precisamos abrir mão do marxismo e do budismo enquanto sistemas de pensamentos e tradições culturais fixas e dogmatizadas. Dalai Lama afirmou que se a ciência moderna comprovasse que algumas ideias budistas não passassem de ilusões, elas deveriam ser abandonadas mesmo se forem tradicionais para os budistas. É com esta humildade que devemos buscar Marx e Buda, pois ambos trazem peças fundamentais para o quebra-cabeça da existência e são passíveis de verificação empírica. Eu mesmo não creio em reencarnação, mas isso não me impede de praticar os ensinamentos budistas como exercícios para nossas mentes. Do mesmo modo um budista em relação ao marxismo não pode imaginar que a luta de classes seja uma invenção de Karl Marx: a luta de classes existe como causa de inúmeros sofrimentos; é o yin e yang social de nosso tempo. Enfim, tudo depende de nossa abertura ao novo e da nossa vontade de experienciá-lo.

4 comentários:

  1. O modo como você colocou a dialética foi de fato muito bom. Essa união entre Marx e Buda, acredito eu, ser de suma importância para o entendimento do conceito, porque ocorre uma certa fugo dos preconceitos quando se unem coisas que na cabeça da maioria das pessoas são totalmente opostas. Temos que fugir desse pensamento cartesiano moderno, atualmente quando se fala para alguém, eu sou contra A, logo, você é a favor de B, isso se torna um erro tão grande que leva a grandes desastres, tanto educacionais, quanto físicos.

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  2. Eu to encantada por esse blog e pela reflexão que ele me proporciona!

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  3. Valeu, pessoal. Seguiremos juntos! Paz e amor.

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