sábado, 2 de maio de 2015

Nirvana, a cessação dos estímulos

No último texto aproximamo-nos do conceito de samsara, o eterno fluxo de gênese, desenvolvimento e perecimento de tudo o que existe ou existirá. Vimos também que somos parte deste fluxo e, limitados por nossos sentidos, desenvolvemos inúmeras ilusões sobre a realidade que, sobretudo, nos impede de compreender a origem dependente de todos os seres e nos apegamos ao "eu". Concluí o texto sobre samsara afirmando que nossa mente é como um lago: sob a chuva, distorce a imagem do céu. Cada gota de chuva é um estímulo da realidade: sons, sabores, formas, pensamentos, etc. Se a chuva cessar a distorção na imagem do céu também cessa. A meditação leva-nos ao "cessar" dos estímulos em nossos sentidos, gerando paz interior e modificando o modo como nos relacionamos com samsara, diz-se que vemos o nirvana. Por isso, samsara e nirvana são a mesma e única realidade, o que altera é o modo como nos relacionamos com ela.

A palavra nirvana vem do sânscrito e é formada pelo prefixo "nir" que significa não e pela expressão "vana", que significa cordão. Aqui o significado é não estar amarrado ou preso ao samsara. Alguns autores também associa o termo "vana" ao substantivo "vayo", que significa ar ou movimento, assim, nirvana seria o fim do movimento, do fluxo a que estamos submetidos; o desatar do cordão que nos prende a samsara.

Para além de questões etimológicas, é interessante notar que não se trata de "alcançar" ou "chegar" a uma espécie de paraíso ou qualquer outro lugar. Um indivíduo qualquer que se torna um buda vê nirvana, mas não vai a um lugar chamado nirvana. Durante a meditação, ao ver nirvana o indivíduo permanece ali, sentado onde está. O zazen, por exemplo, que é a prática dos zen budistas significa meditar ("zen") sentado ("za") e é realizado com o rosto voltado para uma parede afim de reduzir o máximo possível os estímulos que nos fazem mover e movem nossa mente. A meditação, uma das três características fundamentais da prática budista, decanta a mente e, aos poucos, desata-nos dos estímulos externos (sons, cores, etc) e internos (pensamentos, ansiedade, etc) dando-nos paz interior, felicidade e sabedoria.

Por que dizem os sábios budistas que essa experiência é intraduzível em palavras? Como explica Jetsunma Tenzin Palmo "Há um nível de mente, de ser cônscio, que não é dual, que não é conceitual, que é por sua própria definição além do pensamento. Não pode ser pensado e não pode ser conceitualizado, mas pode ser realizado." Ser cônscio e não ser conceitual pode soar contraditório para o marxismo dominante na tradição marxista, pois acostumado a pensar nos moldes da modernidade na qual tudo se reduz à gnosiologia, por isso ocorre o que já escrevi em outro texto, muitos marxistas amigos meus torcem o nariz para a prática espiritual (não confundir com religião ou crença em seres superiores e divinos) sem nem ao menos tentarem verificar, por via da prática, as possibilidades de autoconhecimento e autorrealização pela auto-atividade. Para o "marxismo" reduzido a um método científico chamado de "materialismo histórico-dialético" - expressão que Marx nunca utilizou, mas que se tornou moda após a segunda internacional -, predomina a visão de que há em nossa espécie uma não-identidade entre o sujeito e o objeto, entre o indivíduo e o mundo. Atendo-se a este aspecto, que também é verdadeiro, esquece-se, todavia, do outro lado da contradição que é a identidade.

O indivíduo, diz Marx, é o ser social, por isso, sua formação é histórica, sua origem é dependente das causas e condições sociais em que surge e se desenvolve até sua morte; suas experiências práticas forjam o seu ser. Num determinado momento da evolução individual, explica o psicólogo marxista Vigotski, há um salto qualitativo no desenvolvimento humano que o distingue dos chimpanzés: surge um pensamento verbal e uma fala intelectualizada, mais ou menos aos dois anos de idade. O ser humano é formado na sua relação com os outros e, inevitavelmente, pelas palavras com as quais foi estimulado desde o nascimento e que passa a utilizar. As palavras são estímulos externos que se tornam internos.

Antes de desenvolver o pensamento verbal e a fala intelectual o ser humano é já um ser, e à medida em que vai se apropriado, interiorizando a cultura na qual nasceu e tem de viver acaba por se identificar totalmente com esse repertório cultural como se lhe fosse genético. Desde crianças somos levados a crer que  nossos pensamentos são nossos e o que penso sou eu. Mesmo marxistas que defendem única e exclusivamente a não-identidade entre o sujeito e o objeto acabam por se identificar com esse pensamento que deveria ser também seu objeto de análise. Temos a ilusão de nos identificarmos com o que pensamos, falamos ou agimos.

Não pensem com isso que acredito numa "essência" dentro de cada um de nós e que precisa ser reencontrada... não! Cada ser é uno com o que é. Um homem violento é violento não porque perdeu sua essência natural boa, mas porque ele foi forjado assim pelas causas e condições em que evoluiu como indivíduo e assim age porque não controla a si mesmo na medida em que se identifica com o que é.

O pensamento, tal como toda forma de ser, é movimento, atividade. Os fluxos energéticos neurológicos nos condicionam: uma vez estabelecido uma conexão fica mais fácil pensar e agir desta maneira devido ao fato de que o fluxo já foi realizado uma vez e, assim, cria-se uma espécie de "sulco" em nossa mente pelo qual flui nossa reação. Criam-se hábitos mentais e corporais. Ou seja, você é o que é efetivamente, mas tem a ilusão de que escolheu ser tal como é ou se resignou diante da impossibilidade de mudar sua personalidade para melhor. Como se diz: "Eu sou assim mesmo, é meu jeito"

A meditação, quando decanta a mente, afasta justamente essas reações típicas da personalidade e curam esses "sulcos" pelo qual nossa mente está condicionada a fluir. Serenando os estímulos não apenas externos, mas também internos, reduz-se as abstrações que temos (palavras, conceitos) e isso não é absurdo, é apenas descondicionar-se daquilo que somos uma vez que as abstrações são construções sociais que interiorizamos. Como expressar em palavras esse estágio maravilhoso que é o nirvana (paz interior e sabedoria irreversíveis) em que as abstrações e os pensamentos cessam junto com os sentidos (nirvana = sem movimento)?

Ver o nirvana é ver-se como mais uma parte de samsara, por isso, se você se identifica com seus pensamentos, suas falas e suas ações; se você se identifica com sua roupa, seu carro ou sua casa; mas não se identifica com um rato ou uma batata-doce ou um outro ser humano qualquer você ainda não será capaz de ver-se como natureza.

Pensemos mais sobre isso: se não sou natureza o que sou?

Uma das críticas de Marx aos filósofos é justamente essa divisão entre o homem e a natureza. Não há contradição entre sociedade e natureza. Mas enquanto estivermos presos a samsara evitaremos a possibilidade de experimentarmos a consciência sem as abstrações. Como todo significado de qualquer palavra é uma abstração (Vigotski) não podemos exigir que nos expliquem com palavras a experiência do nirvana. Ver o nirvana é uma experiência individual que não pode ser explicada, mas pode ser vivida por qualquer ser humano, basta ter paciência e praticar o budismo.

Talvez eu e você não consigamos vê-lo, mas na medida em que nos aproximarmos deste estado mental desvelaremos samsara e compreenderemos cada vez mais a nossa unidade com todos os seres e nossa identidade com aquilo que não nos é idêntico. Compreenderemos a vacuidade. Se serenarmos nossa mente como um lago que reflete o céu sem perturbação em sua superfície o fluxo eterno de samsara não causará sofrimento ou ilusão e daremos um salto em nosso modo de ser, pois somos este fluxo, somos uno com a totalidade e isso gerará mais empatia, alteridade, amor, compaixão. Por isso, ver nirvana é a "iluminação" que desenvolve nosso humanismo em outros níveis e aspectos. Marx, quando fundou sua original visão de mundo, concluiu que  humanismo = naturalismo. Somos uno com nosso planeta e todos os seres, e ver o nirvana deve ser de tamanha beleza e paz interior que vale a pena tentar.