sábado, 30 de dezembro de 2017

Mário Schenberg e o budismo-marxismo

"Se eu tivesse de escolher um cientista como continuador de minha obra,
seria o brasileiro Schenberg"
- Einstein

Aprendi com Lukács que a causalidade é princípio do pensamento racional. Igualmente, aprendi isso com os pré-socráticos e os budistas. Como afirma Sidarta, o buda: "Quem vê as causas, vê o Dharma". No entanto, existem muitos escritos contra o princípio da causalidade e sua aplicabilidade às dimensões subatômicas. Jung em seu prefácio ao I Ching afirma que a causalidade seria um princípio do pensamento ocidental. Grandes pensadores como Hussel e outros também são contrários à aplicação da causalidade ao mundo quântico, relativístico, subatômico, etc. Esse texto não é uma crítica a essas posições, apesar da minha discordância. Um marxista que admiro muito e de riquíssima contribuição em diversas áreas, o italiano Antonio Gramsci, desconsidera a possibilidade da causalidade nas ciências humanas, pois este princípio estaria em contradição com a liberdade da práxis (prática, karma, causalidade posta). Todos incorrem no mesmo equívoco: confundem causalidade com determinismo.

É moda, devido ao falso debate científico propagado pelos meios de comunicação dominantes, a afirmação de que a causalidade seja um princípio racional apenas para a física clássica, não a moderna. Há estudos que discordam desta posição. Interessante notar que o alemão Heisenberg é sempre citado quando se quer argumentar contra a causalidade na física moderna, todavia, essa sua posição exposta em 1927 contra o principio da causalidade fora abandonada já em 1930 em outros trabalhos. Quando citam a indeterminação de Heisenberg, se esquecem de afirmar essa evolução em seu pensamento: indeterminismo não anula a causalidade; bem como a indeterminação está também presente no mundo da física clássica.

O marxista brasileiro Mário Schenberg (1916-1990), político e crítico de arte, físico de renome mundial, foi grande defensor do princípio da causalidade aplicado à teoria da relatividade e da aproximação entre a lógica dialética de Marx com o pensamento oriental. Abaixo reproduzo trechos de uma entrevista na qual tematiza o budismo, sobretudo o filósofo e lógico budista indiano Nagarjuna (sec. II-III). Com a palavra, o professor Schenberg:




"A essência do marxismo é uma compreensão dialética da História. A compreensão dialética da história não é um pensar cartesiano, é exatamente uma coisa anti-cartesiano. Talvez na dialética hegeliana, se ela for bem aplicada, e depois na dialética marxista, o pensamento ocidental atingiu maior aproximação com o pensamento oriental. Aliás, isso é uma coisa óbvia para quem compara, por exemplo, a dialética marxista com o taoísmo chinês. Os filósofos soviéticos reconhecem isso, considerando Lao-Tsé como um dos fundadores da dialética. Quem sentia muito isso era Brecht. Não sei se você sabe: Brecht tinha um desses rolos com pintura ou desenho, com um retrato de Lao-Tsé, que ele levava pra onde fosse. Assim que chegava num lugar ele o desenrolava e pendurava na parede. Realmente há uma afinidade muito grande entre os dois pensamentos. Mas essa coisa foi muitas vezes perdida, quando o marxismo foi vulgarizado e deturpado. (...) Mecanizado, não é? O que seria preciso, seria exatamente, desenvolver mais a concepção da Dialética, que é uma tentativa de superação da racionalidade cartesiana. Um outro tipo de pensamento que iria além da racionalidade restrita, e que tem muitos contactos com o Taoismo e outras coisas do Oriente. Eu acho que o marxismo pode ser um instrumento extremamente útil, se for utilizado de uma forma criadora, mas não como um conjunto de receitas. Uma receita fixa é o tipo da coisa anti-dialética. Já que a realidade está sempre em modificação é preciso adaptar o pensamento a essa mobilidade do real (...) Na realidade eu não sei se se pode ensinar dialética a alguém. Eu acho que a dialética é um tipo de ação mental, digamos assim, que tem muitas das qualidades de uma arte. Não é um processo metódico que se aplica automaticamente e que dá resultado certos. É um certo estilo de pensamento diferente, muito intuitivo. Por isso muitos trechos de Marx são geralmente mal interpretados; quase todos. Um caso interessante é do texto em que ele fez aquela tirada famosa sobre a religião, em que diz que a religião é o ópio do povo. Essa frase foi destacada do contexto, e se a gente lê o texto completo, vê que o pensameno dele era bem mais complexo. (...) Inclusive a própria idéia de religião deve ser vista dialeticamente, porque a religião também não é uma coisa fixada de uma vez por todas, mas está mudando continuamente de conteúdo. Na realidade houve muitas vezes uma vulgarização do marxismo, e formularam um certo número de regras. Ora, essas regras não adiantam muito. Eu acho, por exemplo, que não adianta grande coisa, para se aplicar o marxismo, conhecer aquelas três leis da Dialética que Engels enunciou. São certamente interessantes, mas não é conhecendo aquelas três regras que se consegue analisar dialeticamente uma situação. É preciso um senso das contradições, sentir quais são essas contradições. E neste ponto você encontra em Mao coisas interessantes, quando ele combina certas coisas da dialética marxista com aspectos do pensameno tradicional chinês obtendo um esquema mais rico. Em vez de se fixar sobre uma única contradição, ele considera a existência necessária de várias contradições simultâneas e a inter-relação entre elas. (...) Provavelmente Marx não conhecia a Filosofia Oriental, mas se ele a conhecesse, acho que que teria gostado muito. Alguns filósofos soviéticos reconheceram a importância da Filosofia Oriental, tanto que alguns dos melhores estudos sobre esse assunto foram feitos na União Soviética. Inclusive há uma obra monumental de um russo (é um nome muito atrapalhado) sobre a Lógica do Budismo. Há uma tradução inglesa desse livro, creio que da Dover. Mas é uma coisa muito interessante, porque essencialmente uma grande parte do Budismo trata de problemas lógicos. (...) Seríssimos, não é? Tanto que agora já se está começando a compreender no Ocidente que o filósofo Nagarjuna foi um dos gênios da Lógica. Nagarjuna compreendia, por exemplo, muitas coisas que Bertrand Russell começou a compreender no Ocidente sobre a natureza da proposição e outras coisas. Então, mesmo no que se refere à compreensão da Lógica e outros problemas há muitas coisas que o Ocidente não compreendeu tão bem como o pensamento oriental antigo. Mas eu acho que a aproximação maior, talvez, do pensamento oriental se encontra exatamente na dialética hegeliana e marxista".

Confira a entrevista completa clicando aqui.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Espiritualidade materialista?

O sábio vietnamita Thich Nhat Hanh explica que a meditação nos leva a compreender que não há uma substância ou uma essência permanente, imutável, que funda a realidade. A ideia de "consciencia cosmica" ou "buda primordial" ou mesmo "designer inteligente" são incompatíveis com o espírito empírico e causal de Buda e também de Marx. A unidade absoluta entre cada um de nós e o restante do universo é demonstrada pelo conceito de fluxo energético e não implica na existência de entidades gerais, mas no reconhecimento de que cada forma de ser é única e irrepetível. Tudo o que existe é o que Buda denominou de coisas compostas; tudo o que existe surge e perece. "Panta rei" (tudo flui), escreveu o sábio grego Heráclito; o cientista francês Lavoisier afirmou que nenhum existente surge do nada e que na natureza nada se perde, mas tudo se transforma permanentemente de uma forma para outra. Por isso, para Thich Nhat Hanh todo ser nada mais é que uma forma de inter-ser; ele explica que os ensinamentos budistas não nos esclarece acerca da substância, mas é justamente o contrário; como já escrevi no blog, a prática budista nos ajuda a reduzir e superar as abstrações que servem como envólucros da realidade e geradores de sofrimento. A substância para o budismo seria a não substâncialidade. A insubstâncialidade de tudo o que é real significa que o eterno é apenas uma ideia sem correspondente na realidade e que tudo acaba. À medida em que compreendemos e vivenciamos a insubstância experienciamos a verdadeira relação entre nome e forma ou consciência e realidade. Descobrimos a potencia e a beleza de nossa condição humana, natural e terrena, frágil e rara, dando-nos paz interior e bondade amorosa, compaixão para com todos os seres e felicidade em viver. O eterno, o sem-fim, o não-composto não existe, tudo depende de causas e condições, a alma e o corpo formam uma só coisa, ao morrermos nossa alma não se desprende do corpo: nosso corpo e nossa alma não são duas coisas diferentes. Deus portanto é uma ideia, é apenas as nossas qualidades positivas projetadas para fora de nós mesmos como uma coisa externa. Não é Deus que determina nossas vidas, mas nós mesmos, nossas escolhas, ou seja, é o nosso karma (ação). Karma é sinônimo daquilo que Lukács, em sua ontologia, chama de causalidade posta; a prática coloca coisas no mundo (na forma de pensamento, palavras e ação) e sofre as consequências do que põe. Escreve Marx: "(...) seria uma contradição fazer, de um lado, que todas as ideias encontrem sua origem no mundo dos sentidos e, de outro lado, afirmar que uma palavra seja algo mais do que uma palavra, que além das entidades sempre concretas que representamos existam ainda entidades gerais. Uma substância incorpórea representa, muito antes, a mesma contradição representada por um corpo incorpóreo. Corpo, ser, substância são uma e única ideia real. Não é possível separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A palavra infinito é carente de sentido, caso não significar a capacidade de nosso espírito para acrescentar sem fim. E, como só o material é perceptível e suscetível de ser sabido, não se sabe nada da existência de Deus." As qualidades divinas são as nossas qualidades reais, sensíveis, ou seja, as nossas potencias práticas que podem ser desenvolvidas por cada ser humano em qualquer lugar e a qualquer momento. Reconhecer apenas a existência dos interseres em unidade a que nomeamos realidade; reconhecer o automovimento causal determinado pelas condições em que se encontra cada ser é o primeiro passo para a compreensão do Tao, o fluxo energético sem fim nem começo do aqui agora simultâneo em todo cosmo. Uma destas formas de interser é o ser humano, cuja característica principal é antever os efeitos de suas ações. Que efeitos provocamos no mundo? O dharma, que é o método desenvolvido por Buda, fornece resposta a essa pergunta e, sabendo quais efeitos colocamos na realidade, podemos conter ou reduzir os efeitos prejudiciais aos demais seres e ajudá-los a alcançar a paz e a serenidade, sinônimos de felicidade. Os exercícios práticos para gerar boas causalidades, bons efeitos ou bons karmas, ou seja, para que sua prática seja amorosa e bondosa é o que o atual Dalai Lama chama de espiritualidade. Neste sentido, a espiritualidade não está em contradição com a filosofia materialista de que tudo o que existe são formas materiais em permanente movimento. Não acreditar em Deus ou no além supra-sensível, não crer numa força superior, não significa niilismo, não significa o abandono de valores que norteiam nossas relações. Espiritualidade não implica uma substância eterna; não é sinônimo de espírito ou espiritualismo ou espiritismo; não significa a crença no não-material (ainda que muitos marxistas insistam nessa querela); espiritualidade é apenas uma forma de prática. Deveríamos encontrar outro nome para substituir a expressão "espiritualidade"? Talvez. Mas a questão não é de nome, e sim de forma: a forma que é você. O ser humano é o ser da práxis, que é sinônimo de prática, de karma, por isso, meditarmos sobre o que colocamos no mundo ajuda bastante no autoconhecimento e ajuda a compreender o significado do não-agir. Agir só se for para a emancipação dos seres, para a felicidade de todos. Você é o sujeito da mudança, porque não podemos separar seu espírito de seu corpo, sua matéria daquilo que você sente e pensa, por isso, a mudança e o autoconhecimento não são processos meramente intelectivos, mas de mudanças na prática, na forma de intersermos. Não basta interpretarmos e compreendermos a necessidade de mudar o mundo rumo à felicidade de todos e todas; não basta compreendermos corretamente o movimento da realidade sob o capitalismo, suas ilusões e sofrimentos. É preciso mudar o mundo e, portanto, mudar de imediato aquilo que está ao nosso alcance: nós mesmos. Você é aquilo que faz e se o que você faz gera mais ansiedade, medo, tristeza, raiva nos demais seres, seu karma/práxis não ajuda em nada para a iluminação humana global e reitera as relações sociais da economia de mercado. Se você compreender o não-eu; você como um interser, a busca de sua libertação do sofrimento é também ajudar aos outros a livrarem-se do sofrimento; como escrevera Marx no Manifesto Comunista: a liberdade de cada indivíduo é condição para a liberdade de todos. Enfim, o que você faz no mundo?Que causalidades são postas quando você age? Qual o seu karma?