quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Espiritualidade materialista?

O sábio vietnamita Thich Nhat Hanh explica que a meditação nos leva a compreender que não há uma substância ou uma essência permanente, imutável, que funda a realidade. A ideia de "consciencia cosmica" ou "buda primordial" ou mesmo "designer inteligente" são incompatíveis com o espírito empírico e causal de Buda e também de Marx. A unidade absoluta entre cada um de nós e o restante do universo é demonstrada pelo conceito de fluxo energético e não implica na existência de entidades gerais, mas no reconhecimento de que cada forma de ser é única e irrepetível. Tudo o que existe é o que Buda denominou de coisas compostas; tudo o que existe surge e perece. "Panta rei" (tudo flui), escreveu o sábio grego Heráclito; o cientista francês Lavoisier afirmou que nenhum existente surge do nada e que na natureza nada se perde, mas tudo se transforma permanentemente de uma forma para outra. Por isso, para Thich Nhat Hanh todo ser nada mais é que uma forma de inter-ser; ele explica que os ensinamentos budistas não nos esclarece acerca da substância, mas é justamente o contrário; como já escrevi no blog, a prática budista nos ajuda a reduzir e superar as abstrações que servem como envólucros da realidade e geradores de sofrimento. A substância para o budismo seria a não substâncialidade. A insubstâncialidade de tudo o que é real significa que o eterno é apenas uma ideia sem correspondente na realidade e que tudo acaba. À medida em que compreendemos e vivenciamos a insubstância experienciamos a verdadeira relação entre nome e forma ou consciência e realidade. Descobrimos a potencia e a beleza de nossa condição humana, natural e terrena, frágil e rara, dando-nos paz interior e bondade amorosa, compaixão para com todos os seres e felicidade em viver. O eterno, o sem-fim, o não-composto não existe, tudo depende de causas e condições, a alma e o corpo formam uma só coisa, ao morrermos nossa alma não se desprende do corpo: nosso corpo e nossa alma não são duas coisas diferentes. Deus portanto é uma ideia, é apenas as nossas qualidades positivas projetadas para fora de nós mesmos como uma coisa externa. Não é Deus que determina nossas vidas, mas nós mesmos, nossas escolhas, ou seja, é o nosso karma (ação). Karma é sinônimo daquilo que Lukács, em sua ontologia, chama de causalidade posta; a prática coloca coisas no mundo (na forma de pensamento, palavras e ação) e sofre as consequências do que põe. Escreve Marx: "(...) seria uma contradição fazer, de um lado, que todas as ideias encontrem sua origem no mundo dos sentidos e, de outro lado, afirmar que uma palavra seja algo mais do que uma palavra, que além das entidades sempre concretas que representamos existam ainda entidades gerais. Uma substância incorpórea representa, muito antes, a mesma contradição representada por um corpo incorpóreo. Corpo, ser, substância são uma e única ideia real. Não é possível separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A palavra infinito é carente de sentido, caso não significar a capacidade de nosso espírito para acrescentar sem fim. E, como só o material é perceptível e suscetível de ser sabido, não se sabe nada da existência de Deus." As qualidades divinas são as nossas qualidades reais, sensíveis, ou seja, as nossas potencias práticas que podem ser desenvolvidas por cada ser humano em qualquer lugar e a qualquer momento. Reconhecer apenas a existência dos interseres em unidade a que nomeamos realidade; reconhecer o automovimento causal determinado pelas condições em que se encontra cada ser é o primeiro passo para a compreensão do Tao, o fluxo energético sem fim nem começo do aqui agora simultâneo em todo cosmo. Uma destas formas de interser é o ser humano, cuja característica principal é antever os efeitos de suas ações. Que efeitos provocamos no mundo? O dharma, que é o método desenvolvido por Buda, fornece resposta a essa pergunta e, sabendo quais efeitos colocamos na realidade, podemos conter ou reduzir os efeitos prejudiciais aos demais seres e ajudá-los a alcançar a paz e a serenidade, sinônimos de felicidade. Os exercícios práticos para gerar boas causalidades, bons efeitos ou bons karmas, ou seja, para que sua prática seja amorosa e bondosa é o que o atual Dalai Lama chama de espiritualidade. Neste sentido, a espiritualidade não está em contradição com a filosofia materialista de que tudo o que existe são formas materiais em permanente movimento. Não acreditar em Deus ou no além supra-sensível, não crer numa força superior, não significa niilismo, não significa o abandono de valores que norteiam nossas relações. Espiritualidade não implica uma substância eterna; não é sinônimo de espírito ou espiritualismo ou espiritismo; não significa a crença no não-material (ainda que muitos marxistas insistam nessa querela); espiritualidade é apenas uma forma de prática. Deveríamos encontrar outro nome para substituir a expressão "espiritualidade"? Talvez. Mas a questão não é de nome, e sim de forma: a forma que é você. O ser humano é o ser da práxis, que é sinônimo de prática, de karma, por isso, meditarmos sobre o que colocamos no mundo ajuda bastante no autoconhecimento e ajuda a compreender o significado do não-agir. Agir só se for para a emancipação dos seres, para a felicidade de todos. Você é o sujeito da mudança, porque não podemos separar seu espírito de seu corpo, sua matéria daquilo que você sente e pensa, por isso, a mudança e o autoconhecimento não são processos meramente intelectivos, mas de mudanças na prática, na forma de intersermos. Não basta interpretarmos e compreendermos a necessidade de mudar o mundo rumo à felicidade de todos e todas; não basta compreendermos corretamente o movimento da realidade sob o capitalismo, suas ilusões e sofrimentos. É preciso mudar o mundo e, portanto, mudar de imediato aquilo que está ao nosso alcance: nós mesmos. Você é aquilo que faz e se o que você faz gera mais ansiedade, medo, tristeza, raiva nos demais seres, seu karma/práxis não ajuda em nada para a iluminação humana global e reitera as relações sociais da economia de mercado. Se você compreender o não-eu; você como um interser, a busca de sua libertação do sofrimento é também ajudar aos outros a livrarem-se do sofrimento; como escrevera Marx no Manifesto Comunista: a liberdade de cada indivíduo é condição para a liberdade de todos. Enfim, o que você faz no mundo?Que causalidades são postas quando você age? Qual o seu karma?